terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O Lulu vai te pegar!

Ontem, logo após o almoço, a minha digníssima esposa vociferou, sem nem ao menos deixar que eu começasse a digestão: "Que história é essa que tu tá nesse aplicativo Lulu, Filipe Aquino?". Você sabe, desde os primórdios e quase sempre, que se uma mulher chama você pelo nome completo é que alguma coisa está errada. Lembre-se de sua mãe ou de sua professorinha, o seu primeiro amor infanto-juvenil... A sua avó está aí para confirmar a regra. Vó, a exceção. Vó só chama a gente no diminutivo. Netinho querido. Pouco importa se você já tem 30 anos, é casado ou mesmo se ela tem outros mil netinhos e netinhas. Pois bem. Já tinha ouvido falar do aplicativo, mas não consegui acompanhar a discussão em volta dele e ontem, por conta dessa questão, parei e fui ler a respeito. Fiquei estarrecido.

Foi-se o tempo em que as dores e delícias dos relacionamentos a dois ficavam entre duas paredes - ou entre duas pessoas. (Homenagens ao deus Baco são extremamente susurráveis dadas o clima de congratulação e conquista coletivas). É bem verdade que homens costumam compartilhar experiências passadas e presentes nas conversas entre amigos. Mas as mulheres também já não fazem isso há tempos? Eu sei, os grupos de WhatsApp estão aí, mas vamos fingir por um momento que lá todos somos imaculados. Neste momento histórico em que cada um de nós (seres sociais em redes sociais) é um agente de (des)informação, ou um produtor de conteúdo (as marcas e grandes corporações adoram essa qualificação, especialmente se puderem não pagar absolutamente nada), tudo ganha uma inesperada dimensão.

Alexandra Chong é a idealizadora do Lulu. Ela é uma advogada sul-africana de 30 anos, loira, cabelos longos e ondulados. Na foto que vi, fez pose e carão de quem sabe o que quer. Nas palavras dela: "Hoje buscamos referências para escolher um produto ou uma casa. Por que não fazer o mesmo com quem queremos nos envolver?". É claro que informação é bom e quase todo mundo gosta. Mas, que tipo de informação é essa? Segundo li em uma reportagem, o público-alvo inicial do aplicativo foi a massa universitária americana - uma em cada quatro americanas o usa. De 250 milhões de avaliações, 1/3 foram feitas por ex-namoradas. Luz amarela: nesse quadro, o Lulu pode facilmente se tornar uma opção de vingança para muitas pessoas. O Tubby, a versão masculina do Lulu, pode ser classificado da mesma forma. Até onde vai a nossa curiosidade pelo outro? Até onde vai o nosso desejo de vingança? Até onde "alguém vai querer entregar o ouro pro bandido"? Coitado do ser que, por motivos distintos, acabou dois ou três relacionamentos diferentes. Periga tomar porrada de todos os lados, não?

Uma coisa curiosa que percebi foi o quanto o "machismo invertido" está em jogo. Sob um manto de "só vamos fazer o que os homens sempre fizeram", muitas mulheres parecem não terem percebido o quanto esse aplicativo - e a ideia por trás dele -, ao invés de "igualar os direitos", cof!, cof!, só nivela - e por baixo - toda a questão. Segredos da alcova agora pululam entre uma lembrança memorável e uma dor inesquecível. Os diferentes sexos (gêneros!), penso eu, devem ser vistos não só como opostos, mas sobretudo como complementares. As dores e delícias estão aí, afinal.

Toda a sanha de não querer ter sua intimidade - verdadeira ou falsa - publicada para todos verem nos diz muita coisa. O conceito de sociedade (modernidade/vida) líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, nos dá uma interessante luz. Bauman diz: "líquido-moderno é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo."

Em outro momento de sua vasta obra, o sociólogo salienta: "O truque é comprimir a eternidade de modo a poder ajustá-la, inteira, à duração de uma existência individual."

Dito isto, aí reside uma mudança interessante: nada dura para sempre. Pelo contrário: hoje as coisas parecem durar cada vez menos. Querem sempre nos dizem que isso é bom e moderno, mas isso também é muito ruim e cansativo. Aquele casamento de décadas - ou aquele emprego, ou mesmo aquele estilo com o qual você se vestia - virou raridade. "No mundo líquido-moderno, a lealdade é motivo de vergonha, não de orgulho." Não mudar (ou mudar muito pouco) parece passar atestado de incompetência, de preguiça, de acomodação. O dito normal - ou a quase norma - parece ser você aproveitar a viva, correr camaleonicamente atrás do que dizem ser felicidade, tudo embalado naquele modelo família-família-papai-mamãe-titia, carro do ano e celular com uma vogal depois de um número. Nessa esteira, você, mulher corajosa que é, vai namorar quem e quantos quiser até achar a bendita tampa de sua panela. Tudo bem e tudo bom, até que surge o Tubby a lhe despertar os sentimentos mais primitivos, a la o meu passado me condena. Mas a criadora do Lulu garante: "Não se trata de vingança, mas de compartilhar o que você sabe". Desequilíbrio que tenta se equilibrar numa faca amolada que diz "quero saber, mas não quero que saibam". A questão das ditas liberdades femininas desperta interesse especial, uma vez que a ideia de uma mulher com vários relacionamentos ainda perdura sob uma infame adjetivação negativa. Um amigo, numa analogia mulher-automóvel, me disse certa vez: "Quem quer máquina usada demais? Eu quero é máquina nova!". Enquanto isso, livre, leve e solto, o macho-varão com muitos relacionamentos é visto como um vencedor, um garanhão, um reprodutor. Em resumo: um ás do Kama Sutra. Esse mantra avaliativo que diz se mulheres e homens são bons a partir de suas quilometragens, estados dos pneus, situação da lataria e do parachoque infelizmente parece ser repetido e passado para a frente não só por homens. Essa aberração ganha vida nos salões de beleza repletos de Marie Claire, Vogues e afins, treina na academia que só aceita mulheres, dialoga, com foto e vídeo, nas mensagens que iluminam a escuridão dos quartos nas madrugadas insones via grupos de WhatsAppCantemos todos juntos: minha dor é perceber / que apesar de termos feito tudo que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos / como nossos pais

Tá. Além dessas coisas infames e por essa curiosidade mortífera, o que eu, eu mesmo, euzinho, tenho a ver com isso? Sim, vamos lá: somos e estamos cada vez mais idiotas, imediatistas e superficiais. Para ver isso não precisa nem usar óculos. Mas o que me incomodou realmente foi o aplicativo ter me adicionado sem eu ter aceitado nada, certo? Certo, mas errado. Do ponto de vista jurídico, segundo reportagem da revista Época, essa premissa é falsa. Ou seja, aceitei sem nem ver que aceitei. Nos homéricos termos de uso - sim, aquele termo que a gente diz aceita sem ler, aquele mesmo termo que a gente aperta enter/avançar adoidado pra acabar logo -, está previsto que usuários autorizam que aplicativos usem nosso nome, nossa foto, nossa lista de contatos... Raquel Recuero, conhecida pesquisadora de mídias sociais da Universidade Católica de Pelotas afirma: "Mesmo controlando a privacidade de seu perfil, os usuários não se blindam contra usos inconvenientes de dados. Isso mexe com a nossa reputação. O que é dito nas redes sociais afeta nossa vida".

Apesar disso, ainda há quem ache que "esse negócio de redes sociais, Twitter, Facebook" é brincadeira, uma passatempo. É só mais um site para você entrar quando tiver 5 minutinhos de descanso no almoço ou entre um trabalho e outro, uma entrevista e outra... Assange, Snowden e toda a espionagem mundial feita pelos Estados Unidos é meramente um exagero, coisa de gente que não tem o que fazer. Nós nos vendemos sem saber que nos vendemos e agora quem nos comprou nos vende e recebe muito, muito por isso. Segundo notícia, os donos do aplicativo Lulu já receberam quase 5 milhões de dólares de investidores. A mais baixa curiosidade do mais alto e antigo prazer colhe seus louros produzindo loucura.

Li hoje um amigo dizendo que, daqui pra frente, a questão da privacidade vai deixar de existir. Acho uma bobagem tremenda. Não concordo mesmo. Pelo contrário: a nossa privacidade está e vai ser cada vez mais invadida, o que só me demonstra a necessidade de reafirmarmos esse direito inalienável. Isabela Guimarães, do escritório de Direito Digital Patrícia Peck Pinheiro, diz: "A privacidade é um direito básico. Divulgar informações sobre sua performance sexual assim fere esse direito". Já é sabido que as classificações dadas no Clube da Luluzinha estão além-fronteira do aplicativo, pois já estão publicadas em blogs e sites. Achou pouco ou que é bobagem? Agora pense nos vídeos íntimos que são divulgados ou postados em sites xxx diariamente. Continua achando pouco? Pense na recente onda de vergonha e suicídio que assola jovens (claro, a imensa maioria é de mulheres. Deve ser coincidência, você sabe) em suas descobertas sexuais. Não somos donos nem dos nossos corpos, o que é muito, muito triste mesmo. E, bem, que já somos produtos não é novidade. O que parece ser uma incômoda novidade é que o produto é a gente, mas quem nos avalia (ou melhor, nos vende) são os outros (ou as outras, no caso).

A ilusão do nosso século parece ser a ilusão do anonimato conferida no ambiente virtual. Ledo engano, para o bem e para o mal. Enquanto isso, vamos levando a vida, nivelando por baixo, destruindo pontes de confiança, manchando lembranças, publicizando desventuras... Desafiando e dinamitando a fé na humanidade.