quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Mais Hipócrates e menos hipócritas, por favor!

Desde a divulgação do programa Mais Médicos, do Governo Federal, me posicionei a favor. Com algumas ressalvas, é bem verdade, sobretudo porque acredito que nenhum programa - econômico, social, cultural, ambiental - vai consertar o que temos de ruim do dia para a noite. Raramente existe solução fácil para problemas excessivamente complexos e com múltiplos atores. Muitos problemas, aliás, para serem resolvidos, levarão décadas e muita, muita vontade política (para não dizer outras coisas). Para ficar apenas num exemplo: de acordo com o estudo Progress on Sanitation and Drinking Water, da Organização Mundial da Saúde/UNCEF, de 2010, quase 7 milhões de habitantes não tinham acesso à água potável. Trinta e um milhões de brasileiros e brasileiras não tinham coleta de esgoto. Isso é alarmante e reflete diretamente na qualidade da saúde de nossa gente. Grande parte desse esgoto não tratado vai direto, você sabe, para as nossas praias. A despeito disso, não adianta um político ser fotografado graciosamente a cair de cabeça em certas ondas porque, todos sabemos, elas continuam impróprias para o banho. O dizer "pinto no lixo" legendaria bem a foto.

Fui - e continuo sendo - a favor do programa porque nele reconheço infinitos méritos. E uma coragem imensa, imensa. Quando o Brasil decidiu-se pelo SUS, estabeleceu que o direito à saúde era um bem de todos os brasileiros e brasileiras. Isso é importantíssimo e diz muito sobre o país que somos e o país que queremos ser. Nos últimos dias, desde o lançamento do programa, fiz vários comentários sobre a questão, sobretudo apontando a hipocrisia de grande parte da classe médica, sem falar no preconceito ideológico de muitos. Apontei o excessivo interesse classista, muitas vezes, acima do interesse comum. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Destaco dois pontos:

- Antes, quando do lançamento do programa, a questão principal era a aplicação do Revalida, o exame que comprovaria a capacidade dos postulantes. Um médico brasileiro que mora em Portugal - Pedro Saraiva - denunciou que o exame era montado para dificultar ao máximo a aprovação dos postulantes, em geral brasileiros que fazem Medicina em outros países, mas também estrangeiros. Explico: a prova trazia questões que, para o recém-formado, eram praticamente impossíveis de serem respondidas, dada a sua inexperiência e desconhecimento em assuntos específicos. Ou seja, a prova era recheada de perguntas a quem só especialistas vividos poderiam responder. O objetivo, claro, aí está: blindar a entrada de quem ousasse sonhar em adentrar na patota da classe médica. A quem interessaria a menor quantidade de médicos? Ora, ora, pensem com seus botões. A população que sofre e clama por mais médicos certamente não é uma resposta válida. Ou você já viu algum paciente dizer que é contra a importação da médicos? Em prova recentemente aplicada pelo Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Brasil), constatou-se que 54,5% dos médicos que fizeram a prova não acertaram nem 60% das questões, ou seja, não teriam condições de atuar. O presidente do Cremesp, Renato Azevedo Junior, disse que "O resultado é preocupante e confirma a nossa suspeita de que há um grave problema na formação dos médicos. O problema precisa ser enfrentado". O que quero destacar com isso é muito simples: grande parte dos nossos médicos vive numa bolha e, por conta disso, não consegue reconhecer suas limitações. Daí, como reconhecer que além de poucos, muitos são ruins? Não. Acham exatamente o contrário: são bons e em quantidade suficiente. E não adianta você dizer que o Brasil, 7a. economia do mundo, tem apenas 1,8% de médicos estrangeiros enquanto a Inglaterra - com um sistema de saúde semelhante ao nossos SUS - tem 37% de seu corpo médico formado por estrangeiros, ou que os EUA têm 25%, Canadá, 22%... Como eu disse para uns amigos médicos, claro que sou a favor de um revalida para os médicos a serem importados. Mas um revalida condizente com o que queremos e precisamos, e não um revalida que invalida. Até porque eu sou plenamente a favor de que venham médicos capazes, pois médicos ruins já formamos aos montes nas nossas universidades, infelizmente.

- Depois, num outro momento, a questão passou a ser a quantidade de médicos. Já está comprovado por A+B que os médicos brasileiros são poucos, dado a necessidade de nossa gente e, sobretudo, dada a dimensão continental do nosso país. Além disso, estão extremamente mal distribuídos. O raciocínio fácil de alguns que portam o jaleco branco tenta pregar a seguinte peça: os nossos médicos estão no Sudeste e no Sul porque lá é onde estão as melhores condições de trabalho, lá é onde têm hospital com qualidade, lá é onde estão as residências, não falta isso, não falta aquilo... Como as últimas notícias sobre o assunto têm nos mostrado, a coisa não é bem assim. Há lugares, desde hospitais de referência, como o Hospital de Câncer de Barretos, a outros, como na cidade de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, que estão em seríssimas dificuldades por falta de... investimento? Não! Por falta de médicos! A cidade de Novo Hamburgo, que citei como exemplo, vai fechar a partir de hoje a sua UTI Pediátrica por falta de profissionais. Segundo a assessoria de imprensa do hospital, o Hospital Regina deveria ter 8 profissionais, mas, atualmente, conta com apenas 4, sendo que dois pediram afastamento temporário. O quadro é esse e só não vê quem não quer.

A questão é simples: o concreto rachou. Não dá mais para tapar o Sol com o estetoscópio. Nos últimos dez anos, segundo o Ministério da Saúde, há um déficit de cerca de 50 mil médicos. Os estrangeiros que serão importados virão para a saúde básica. O que se destaca na saúde básica é atenção. E atenção só dá quem está presente. É plenamente entendível que muitos dos médicos do Norte e Nordeste, quando migrem para o Sul e Sudeste para fazerem residência e se especializarem, por lá fiquem. Já há estudos das próprias entidades médicas que comprovam que cerca de 80% dos médicos que fazem residência tendem a fixar-se nos locais onde fizeram residência. Enquanto isso, o que diremos para as famílias que dormem nas filas na esperança de conseguir marcar uma consulta? É hora de enfrentar os problemas e quebrar certas proteções e mitos. Com a certeza de que não faremos tudo do dia para a noite, conforme destaquei, penso que não dá para dobrarmos a esquina e fingir que certos problemas não existem. Muitos problemas clamam soluções. A hora de minimizarmos este talvez seja agora.

Temos visto nas últimas semanas várias manifestações da classe médica. Cansados da possibilidade de receberem apenas 10 mil reais por mês, acham que é pouco. Falam em precarização do trabalho médico. Acho que falam sem saber o que isso significa em sua plenitude. Num post futuro, vou mostrar como isso é uma meia verdade, pois, na verdade, o que há é a precarização para quase todos os trabalhadores na economia globalizada. O que acontece agora é que os médicos sofreram um choque de realidade: o quadro é trabalhar muito e ganhar menos, menos do que um dia sonharam ou lhes prometeram. Esse quadro lhe parece familiar, não? Uma das principais características do trabalhador precariado é o baixo salário - nisso, por exemplo, os médicos quando argumentam viram piada. Você, que me lê agora e que acabou de se formar no seu curso, toparia receber R$ 5.000 (a metade do oferecido, hein!) no primeiro emprego, custeado pelo Governo Federal durante 3 anos? Por que o Brasil deve ficar com medo - e refém - dos médicos? Só quem tem reclamado do Mais Médicos são os próprios médicos. Ou você já viu o pessoal da Fisioterapia, Psicologia, Fonoaudiologia, Enfermagem reclamar? As outras disciplinas da equipe médica sabem o que é ficar refém da classe médica. Basta lembrar do Ato Médico que, a despeito de estabelecer áreas de atuação, tinha como objetivo estabelecer que o médico era quem mandava. E ponto final. Sob o olhar das entidades médicas, ao médico não cabe agora ser apenas médico: querem ser ainda o xerife, o prefeito e o padre. Fisioterapeutas, psicólogos, fonoaudiólogos, enfermeiros etc., sabem, mais do que qualquer um, que muitos médicos, sobretudo a nova geração mais afeita à máquina que ao homem, têm o rei na barriga. Como ousar direcionar o olhar na direção de onde foram sociohistoricamente (econômica e culturalmente, também) instruídos para não olharem? Muitos médicos, numa atitude covarde que mancha o juramento de Hipócrates, começaram a paralisação desmarcando consultas e operações no SUS. Essas consultas e operações, como sabemos, demoram muitas vezes meses para serem agendadas. Quando eu falo que há um excessivo corporativismo e um desinteresse por grande parte da geração médica atual pela coisa pública, não é sem razão. A quase totalidade das manifestações médicas foram realizadas durante o horário do serviço público. Paralisação na hora do atendimento em consultório privado? Nem pensar! Um amigo dentista comentou que em São Luís ele tinha se surpreendido, pois poucos médicos haviam se manifestado. Eu respondi a ele: "Meu caro, isso não é novidade. Muitos não se manifestaram por que muitos não há". Simples assim!

Já tanto abordei e há tanto a abordar nesse assunto que, saliento, eventualmente esta temática merecerá outros posts, sob pena d'eu não ser atendido por mais nenhum médico, inclusive os meus vários amigos que se formaram nessa tão fundamental profissão. Constatei que depois que comecei a me posicionar fortemente a favor da importação de médicos de Cuba, Espanha e Portugal - se você falar que é só Cuba assegura o seu preconceito ideológico e o seu desconhecimento, afinal, Cuba tem a melhor saúde básica do mundo segundo a Organização das Nações Unidas -, virei um burro. Quem critica os médicos vira burro e inimigo figadal da classe. Se eu não tivesse traquejo, confesso, poderia perder boas amizades. Contudo, fiquei só com a dor de cabeça (já medicada, relaxem!). Há alguns dias, vi médicos dizerem pelas redes sociais coisas como "Eu já marquei o seu rosto. Estou esperando quando você der entrada no hospital...". Isso, entre outras coisas, é sintoma de corporativismo excessivo. O que mais me preocupa é o quanto alguns estão desplugados da realidade social de nosso país. Critiquei e virei um pária. Imagina o que não acontece nas filas intermináveis e nos corredores cheios de macas em nosso país? Como ousei criticar a classe mais blindada do Brasil, virei um ignorante, um ser que não sabia de nada por saber o que eu sei e falar o que eu, pretensamente, não deveria. E, vale lembrar, eu não sabia de nada e não tinha direito de opinar sobretudo porque nunca peguei num bisturi. De que me adianta argumentar que já li vários autores e estudos sobre a questão? Nada! "Ei, eu tive uma disciplina no doutorado que foi só a questão da saúde, dos hospitais, do envelhecimento da população mundial...", nada de novo. Eu não sou médico, logo, tenho de ficar com o bico calado. Mas como eu persisto... Com felicidade e alívio, vi que muitos médicos apóiam a importação dos médicos, pois são sabedores da situação da categoria: pouco interesse pela coisa pública e muito interesse pelo privado (onde se ganha mais) resume bem parte da questão. Nesse quadro, é bom constatar, esses próprios médicos que são a favor da importação viraram traidores, personas non gratas, indignos de serem partícipes do clubinho. Desde o começo, ficou claro que nenhum médico perderá o seu emprego. Os médicos que serão importados irão trabalhar onde nenhum (ok, muito poucos) dos nossos querem ir. Essa é a questão. Essa é a verdade. Por que tanto medo? A reserva de mercado fica cada vez mais clara. Mais médicos? Só se for dos nossos, formados em faculdades com mensalidades cada vez mais altas. Depois de formados, claro, esses novos médicos terão de correr atrás do alto valor gasto. O investimento sempre cobra o seu preço. Isso para falar apenas do custo de formação nas faculdades particulares que, claro, não são totalmente particulares, haja vista o uso do FIES. O ponto é: chega de hipocrisia. O Estado brasileiro precisa investir muito mais e para de subsidiar os planos de saúde, é bem verdade. Exijamos isso. Mas precisamos de muitos, muitos mais médicos para tirarmos o nosso país da UTI. Tenhamos isso claro, também.

PS: Numa próxima, quem sabe, podemos falar do obscuro "mercado de locação de CRM", ou dos médicos que batem o ponto e não trabalham, ou dos médicos que moldam dedos de silicone para simular que os colegas estão na labuta... Quem sabe também não aproveitamos para falar do fato da turma de 2012 de Medicina da USP não contar com nenhum negro? Deve ser coincidência, você sabe... No momento, me recuso a falar desses pontos e, em especial, da hashtag mais popular no Brasil há dois dias "Somos ricos, somos cultos", pescada na manifestação de médicos em Brasília. Isso é além da hipocrisia; virou achincalhe.

Um comentário:

Renata Navarro disse...

Tenho me'dicos na minha familia que foram trabalhar onde nao havia medicos, em alguns lugares realmente ha' um descaso.com pagamentos e tudo mais, realmente e' dificil a moradia mas nada os impediu de continuar trabalhando e ganhando experiencias que jamais teriam em grandes cidades.
Concordo com praticamente 100% do que escreveu, os medicos que nao se encaixam no que voce escreveu e' uma minoria... e que sofre por ser essa minoria que acredita no trabalho em prol da saude e nao do dinheiro. O (meu) medo da mudanca vem em relacao ao: Sera' que esses estrangeiros realmente querem trabalhar onde nao ha' medicos? Havera' uma real fiscalizacao e direcionamento dessas pessoas?
Enfim, questoes que so' poderemos responder na pratica porque na teoria fica facil! Vamos ver o que acontece.