quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O dia em que corri mais rápido que qualquer campeão olímpico

Ben Johnson, Carl Lewis, Donovan Bailey, Asafa Powell, Usain Bolt. Escolha qualquer um. Escolha qualquer um desses. Se preferir, escolha qualquer outro que não citei. Pense em algo bem veloz. Vale até escolher um guepardo. Contudo, desde já, alerto: nenhuma - absolutamente nenhuma - escolha foi, seria ou será capaz de correr mais que eu quando como n'uma fatídica noite de segunda-feira, há uns 14, 15 anos. Eu, lá pelo meio da adolescência, destrambelhado e observador, vinha alegre e cansado de um jogo de futebol de salão no Guioberto Alves, um dos grandes ginásios esportivos de São Luís, localizado no entroncamento do bairro onde vivi a vida inteira (Parque Amazonas) e outros dois, o Bairro de Fátima e a Areinha, dois dos locais mais esquecidos de São Luís, a capital brasileira do abandono, a capital sulamericana do descaso, a cidade que é patrimônio mundial mas que, esquizofrênica, tem surto zumbístico-asfáltico de 6 em 6 meses. Pois bem. O ginásio fica a não mais de 200, 300 metros de minha casa. Fui andando para já chegar aquecido, pronto para o jogo. Animado, rumei ao ginásio cheio de tralha: meias, tênis esportivo, chinelo, camisas, calção. A isso, maquinava jogadas mentais, possibilidades para anular alternativas dos adversários e evitar gols desastrados. Era só um jogo? Era mais um jogo? Não sei. Ia cheio de sonhos. Não lembro o placar final do jogo, mas não consigo esquecer que voltei voando feito um raio que decide cair no exato instante em que cai.

Nessa triste e distante segunda-feira, andava pelas ruas já mal iluminadas de minha cidade, de meu bairro. No bairro da minha vida, bairro esse que você passa a vida toda e vê um monte de familiar decidir morar até o fim dos seus dias porque, sei lá, é assim, é melhor assim, sempre foi assim. Eu sou daqui. Eu sou isso aqui. Vou pra onde? De cabeça baixa, lembro de estar pensando no que deu certo e errado no jogo. E fui andando, vestido com as roupas que levei de casa: uma camiseta qualquer, uma bermuda, um par de chinelo. No ombro, carregava, com minha alta e franzina estrutura física, uma grande bolsa que, dentro, levava um tênis de futsal de pontuação 40 e a equipagem completa do time, orgulho de todo amador que adora esporte: o calção e a camisa 4 do time de futsal do Farina, a escola que estudei entre os 4 e 15 anos.

De cabeça baixa fui andando, guiado pelos rastros de luz, a fraca luz dos postes que a cada passo ia se amarelando e escurecendo mais e mais como se quisesse ela própria desistir da vida, apagar-se, anular-se, queimar-se antes de ser vítima de uma pedrada qualquer que a despedaçasse por inteira. A rua estava deserta, mesmo ainda não sendo nem oito horas da noite. O poste - o único poste desse trecho na rua toda - fica exatamente na frente da casa do meu tio. Decido continuar andando da calçada, passar pelo estreito espaço entre o poste e um muro pichado por letras e frases estilosas que sempre me chamaram atenção e me despertaram a curiosidade: "O que será que tá escrito? Não consigo identificar nada!". De repente, como num susto, dois jovens pararam na minha frente. O da esquerda se apressou em segurar a bolsa, logo me intimando a não fazer nada, não gritar, nem correr. Enquanto isso era mentalizado por mim, o da direita levantou sutilmente a camisa, de forma que ficasse impossível não visualizar uma faca e seu espantoso tamanho: uma reluzente peixeira. De olhos arregalados, permaneci imóvel como se sentisse a própria respiração dentro de um escafandro. Talvez pressentisse que algo estava mudando para sempre, algo se transformando irremediavelmente, feito um conhecimento libertador, feito como quem vê a vida e a inocência escorrendo pelos degraus de uma escada num filme em branco e preto. Remexeram meu bolso. Confirmaram que eu não usava relógio. Perguntaram pela minha carteira. Vasculharam minha cintura. Eu não tinha nada, e tudo que tinha estava na bolsa. O inferno - longo e penoso como uma violação de lei divina que eu já não acredito - parecia estar próximo do fim. Nesse instante que precede o estouro da liberdade então aprisionada, uma bomba explode: o então meliante que carregava a faca me pediu para tirar a camisa, soltar o chinelo e tirar a bermuda, ficando só de cueca. Meu primeiro pensamento é fugir, correr, sair empurrando tudo e todos com a força que só um desesperado pela vida pensa possuir. Tiro a bermuda, solto a chinela, estico a camisa, que agora parece estar colada ao meu corpo como uma segunda pele. Fico só de cuecas. Pegam a minha roupa, minha chinela, empurram tudo na bolsa e saem correndo em disparada. Em três segundos, os dois se misturam à penumbra da rua deserta, da esquina mal iluminada, da noite insone. Enquanto isso, eu, como um figurante, pareço uma terceira pessoa que vê tudo de longe: de um lado, dois correm. De outro, eu vejo a mim mesmo como se estivesse num palco, parado, imóvel, iluminado por um canhão de luz e desespero.

Sozinho, na névoa do nervosismo errático de quem acabou de ser assaltado, só de cuecas, cansado e humilhado, saio correndo. Saio correndo pra casa com o orgulho ferido, como se estivesse totalmente despido de minha incipiente cidadania. Como se o certo de meus direitos, dos meus bens, da minha própria vida, estivessem acabado de sofrer uma dilapidada. No meio da correria entre local-de-assalto-e-minha-casa, 100 metros precisavam ser superados. Nisso, pouca importava se eu já me encontrava fisicamente extenuado pela partida de futebol. Mentalmente stressado, então, nem se fala. No meio do caminho e do desespero, vizinhos e vizinhas observavam com estranheza aquele jovem de não mais de 15 anos correndo de cueca pelo bairro escuro e esburacado, mas sempre tranquilo. Parecia um amante que, desprevenido, tem de fugir da casa da amada porque o marido chegou. Chego em casa esbaforido, com a cabeça doendo e o sangue quente indo dos pés à cabeça em tempo recorde. Martelando a porta, grito como se estivesse levado uma facada no tórax. De dentro de casa, minha mãe pede calma e diz que já vem abrir a porta, alertando, com bom humor, que eu não nasci de 5 ou 6 meses. Que esperasse, portanto. Tento respirar fundo. Não consigo. Pareço um náufrago que se livrou do mar e pôs os pés na areia. Grito urgência, peço pressa. "Estou nu!". Rindo, minha mãe vem abrir a porta. Não entende nada. Me olha e pensa ser alguma brincadeira. Atravesso o pequeno terraço dizendo que fui assaltado. Sigo com afinco pra cozinha, vasculho armários e gavetas, procuro o faqueiro. Quero a maior faca, a mais pontiagua, a mais brilhante: como um espadachim talentoso. Chamo meu pai que está no quarto lendo qualquer coisa. Subo as escadas e conto, entre pratos, tremeliques e saudade de minhas coisas, o que aconteceu, minha saga de autocontrole e sorte do destino. Mas não basta. Nada basta. É segunda e no sábado já tem outro jogo. Como vou jogar? Não tenho tênis, não tenho camisa, não tenho meia, não tenho nada. Exijo justiça. Quero reparação. Quero minhas coisas de volta. "Pai, pega o carro. Eles devem estar por aqui perto. Vamos atrás! Rápido! O senhor chega, joga o carro pra cima, eu desço com a faca...". Meu pai me olha como se estivesse ouvindo literatura fantástica, sorri com tranquilidade, me abraça e me pede para ir tomar banho, afinal, havia acabado de disputar uma partida de futebol. Como se puxasse bolas de aço pelos calcanhares, saio do quarto com a estranha sensação de frustração. Xingo meu pai mentalmente. Não entendo o mundo. Cadê a Justiça? Por que meu pai me mandou ir tomar banho? E os bandidos, vão usar minha camisa tão suada (literalmente, aliás) por aí como se fossem eu? Quero as minhas coisas de volta, porra! Penso que ele não quer fazer nada porque está morrendo de preguiça. Aliás, pareço ter a certeza de que se trata da mais pura e genuína preguiça. Depois, arrependido de meu julgamento, concluo comigo mesmo que o que ele estava sentindo não era preguiça, mas cansaço de mais um longo dia extenuante de trabalho. Saio do quarto dos meus pais. Fecho a porta lentamente. Ando devagar. Penso carregar todo a injustiça do mundo nas costas. Penso também carregar toda a solução do problema da violência. Vou para o meu quarto. Ligo o chuveiro e banho. Enxugo-me, me visto, ligo a TV num canal qualquer. Canso. Vou para o computador. Converso. Reencontro amigos e converso virtualmente. Leio piadas. Ouço música. Rio de um nickname engraçado. O dia segue. A noite segue. A vida segue.

E como a vida segue... Anos depois, voltando pra casa numa viagem tediosa entre a Praça Deodoro e o ponto onde desço, o ônibus para no meio do Bairro de Fátima. Olho pela janela. Pisco. Respiro. Vejo a criançada, suando em bicas, correr atrás de uma bola mixuruca no meio da rua. Na partida de travinho, dribla-se, entre buracos e carros, a desilusão, a fome, o abandono, a invisibilidade. Uma jovem, muito jovem, embala, encostada na porta, uma criança que por algum motivo eu penso ser sua filha. Bem bem poderia ser sua irmã mais nova. Nunca saberei. Respiro. Fecho os olhos. O ônibus não se move. Estou com fome. Quero chegar logo em casa. Reabro os olhos. Olho para os passantes. A parada do ônibus parece interminável. Tudo se move, mas parece que nada de mexe. Respiro. Calado, lamento e reclamo. Olho para qualquer um. Olho para um, olho para outro, olho quem passa até que... olho para uma camisa, uma camisa esportiva com um número 4 desbotado nas costas que parece se destacar em meio a descamisados e camisetas folgadas em corpos esguios. Que camisa é essa? Lembranças parecem saltar aos olhos. Oh! É a minha camisa! A camisa que me roubaram anos atrás. Não vejo o rosto de quem a usa, mas olho para ela e lembro de cada detalhe, da textura, de como me sentia forte chutando a bola pra onde eu estivesse apontado. É a minha camisa, ela ainda existe. Fecho os olhos por um segundo, um segundo que parece um ano. Lembro do assalto, de cada detalhe dele e de tudo que senti. O ônibus anda, parece que o motorista vai dar a partida. O ônibus se mexe. O motorista acelera. Uma criança atravessa na frente do ônibus. Um gol é marcado. Xingamentos por todos os lados. O desafiado é meu? Apressados como se suas mães estivessem parindo, outros motoristas buzinam. Querem celeridade. Querem passar, querem seguir em frente. O dia precisa seguir. A noite já vem vindo. A vida vai passando.

Ontem, depois de tanto discutir e ler sobre violência, "bandido bom é bandido morto", Direitos Humanos e tudo mais, só conseguia pensar: será que minha camisa continua por aí, perdida entre os sonhos que já tive e os que ainda vou ter? 


Ainda vão me matar numa rua. 
Quando descobrirem, 
principalmente, 
que faço parte dessa gente 
que pensa que a rua 
é a parte principal da cidade.

(Paulo Leminski)


sábado, 12 de outubro de 2013

Você pode tudo: só não pode confundir Justiça com vingança.

Eu sou ruim de matemática, mas de português e algumas outras coisinhas eu sou... mais ou menos. Sendo assim, nesse surto de autoengano, não consigo entender qual a dificuldade em compreender o que significa o famigerado termo Direitos Humanos (na verdade, eu até acho que sei, só não quero falar aqui. Sou tímido.). Mas, vamos lá: Direitos Humanos é Cidadania. Ponto. De exclamação. !!!. Qual a dificuldade em entender isso? Onde tem Cidadania existem Direitos Humanos. Onde não existem Direitos Humanos, vemos triunfar a brutalidade, a ignorância, o desconhecimento, o não-reconhecimento do outro e sobretudo a violência, tudo num liquidificador que se retroalimenta como se fosse natural as cadeias (do mundo, viu? Não é só do Brasilzão racista, não) se parecerem cópias pós-modernas dos navios negreiros. Não existem Direitos Humanos para preto, para branco, para amarelo, lilás e furta-cor, para bandido, para mocinho, para dono de loja, para funcionário, para políticos, para publicitários, para advogados. Existem Direitos Humanos para... humanos. Esses aí que circulam pela cidade aí afora. E, olha, eles existem até para os animais, veja bem. É da alçada do chamado Direitos Humanos não pegar um gato na esquina e torcer seu pescoço até quebrá-lo. Há quem tenha dificuldade em entender até aqui? Ajudo. Sou persistente. Tentarei ser didaticamente mais claro: Direitos Humanos é direito à vida, à propriedade, liberdade de pensamento, de expressão, de crença; é direito ao trabalho, à educação, à saúde, à previdência social, à igualdade de oportunidades (bem, aqui reside um ponto importante, mas eu sei que para muitos isso pouco importa. Farinha pouca, o pirão dos meus - que são sempre bons e castos - primeiro). Vale lembrar que ainda há os direitos chamados de "difusos e coletivos": direitos à paz, ao progresso, à autodeterminação dos povos (quem não consegue pensar além de um mundo moldado e coberto pela bandeira americana do self-made man terá dificuldade aqui, viu?), ao meio ambiente saudável... É muita coisa, convenhamos. Não se esqueça dos direitos do consumidor também, afinal, o consumidor, mesmo consumindo feito máquina, ainda é um... humano. Ao menos é o que me promete a campanha publicitária. É o que dizem. Juro. Vi na TV. É sério, não foi na Veja. A Veja mente. Aliás, todo mundo mente. É tudo vagabundo! Pausa. Respira. Segura na mão do Deus polinésio e vai. Há quem confunda problema de vista com dificuldade de enxergar o óbvio ululante (não é o óbvio do Lula, viu?). Prometo que não se trata de blá blá blá de Ciências Sociais. Há muitos outros direitos, eu sei. E você também sabe (mesmo fazendo um esforço e se distorcendo todo para pensar que não). Saiba: somando isso tudo e tudo que não foi dito, um direito que não é direito humano é o direito de matar o outro. Nem é direito de pessoa alguma, tampouco o é do Estado Democrático no qual vivemos. Isso simplesmente é crime, capisce? Qual a dificuldade em percebermos isso? Falimos moralmente a tal ponto? Recuso-me! Mesmo! Há quem diga que a Lei de Talião ficou para trás e avançamos como sociedade. Há quem garanta que não, mesmo nos seus desejos maaaaaais profundos, mesmo no seu medo maaaaaais incontrolado. Claro e cristalino: se você mata alguém, você é um assassino (com atenuantes e agravantes de "cada caso é um caso"). Você pode até matar alguém porque esse alguém matou ou estuprou sua família. Você pode tudo. Só não pode achar que isso é justiça; isso é apenas vingança.

Lançamento para o começo de novembro que nos convida ao prazer de ler. Vamos nessa? :)
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=42144799&sid=155193125151011491784028760